MARX, HEGEL E KANT (1931)
Plínio Salgado
O marxismo é o erro, na verdade, porque nega
a finalidade do Espírito e o valor ideal da concepção mística; e faz mais:
relega a uma condição secundária as próprias aspirações estéticas, tentando
criar o padrão do homem segundo o que podemos denominar a “psicologia da máquina”.
No entanto, há um aspecto que cumpre
assinalar no marxismo: é o seu ponto de partida, de desassombrada, corajosa
negação.
O marxismo procede diretamente de Kant e de
Hegel. Ao passo que Kant considera o mundo como ele é, Hegel trata de explicar
o seu desenvolvimento. Nada há imóvel. A ideia absoluta traduz-se no movimento
contínuo. Do movimento constante da ideia absoluta, procede o desenvolvimento
do Universo. A tese gera a antítese, ambas se fundem na síntese, e esta se
divide novamente. Hegel é um idealista, mas, o seu sistema encerra o pensamento
revolucionário. É Fuerbach, seu discípulo, que absorve, a um tempo, o processo dialético
e o senso evolucionista, materialista, experimental. Ele mostra – resume didaticamente
Riazanov (Marx e Engels) – “que todas
as nossas ideias sobre Deus, os diferentes sistemas religioso, compreendido o
Cristianismo, são o produto do homem mesmo; que não foi Deus quem criou o
homem, mas, o homem quem criou Deus à sua imagem”. De sorte que o homem é o
princípio fundamental da filosofia de Fuerbach. “A lei suprema para o mundo
humano não é a lei de Deus, mas o bem do homem. Por outras palavras, ao antigo
pr8incípio teológico, ele opõe o princípio antropológico”(Ob cit.).
Marx completa a evolução do pensamento
germânico, criando a sua filosofia de ação. Ele se baseia na dialética de
Hegel, no materialismo de Fuerbach, no utopismo de Saint-Simon e seus
discípulos, na teoria dos impulsos de Fourier. Baseia-se sobretudo, na
precedência da matéria sobre o espírito: houve tempos em que o homem existiu
sem consciência; esta veio depois.
Porém Karl Marx procede, como quase todos os
valores filosóficos e sociológicos de sua época, do gênio de Emanuel Kant.
Obscuro, complicado, profundo, Kant exprime,
na verdade, a caótica nebulosa do espírito do seu tempo, da qual se haviam de
destacar as grande ideias nucleares de sistemas geradores de novos rumos
científicos, sociológicos, religiosos e políticos. Kant é como essas imensas e
transcendentes sinfonias wagnerianas, que parecem usinas animadoras de
estranhas harmonias, contendo na sua grande massa como que o limbo de todos os
ritmos. Desenvolvem-se em Kant as forças paralelas da moral dogmática e do
sistema crítico. Ele vem de Leibnitz e de Wolff, de Rousseau e de Newton; é o
grande complexus despertado por Hume
do sonho dogmático, de que derivarão constelações de filósofos e pensadores. O
século XIX acorda com essa linguagem, que vai traduzir-se na lei dos três
estados de Augusto Comte; na sociologia cósmica e mecânica de Dpemcer; no
monismo de Haeckel e Lamarck; no cientificismo evolucionista de Darwin, de
Buchner, de que Virchow deduz a linha política do socialismo. Desse impulso
inicial procede, de certa forma, o i9ndividualismo de Nietzsche, de Carlyle, de
Schopenhauer; o socialismo de Blanqui, de Lassale; e toda essa galeria do
anarquismo, que vai de Proudhon e Max
Stirner, a Bakounjine, Kropotkine e Tucher
Karl Marx, também, saiu dessa imensa
nebulosa. Ele parte de Hegel, guardando sempre a linha do desenvolvimento
dialético, no que o seus sistema tem de filosofia; mas, com Fuerbach, ele se
transporta para o campo do evolucionismo experimental, caminhando paralelamente
com Spencer; e é no utopismo quase místico dos franceses que ele vai buscar sua
índole política. Faltava ao socialismo francês, que tão grande influência
exercia na Alemanha e na Rússia, o pensamento filosófico, harmonizado com o
pensamento científico. O marxismo fundiu todos os elementos e traçou suas
grandes conclusões.
A
NEGAÇÃO COMO IDEIA
O senso científico, porém, era um
desdobramento do nominalismo; e Marx, entrando nesse campo, desvia-se do
idealismo de Hegel. Nesse desvio, como que traça um círculo e torna a Hegel, ao
velho idealismo, que já tinha vindo remotamente de Platão e entrava no século
XIX, tendo passado pelo cerrado nevoeiro de Kant, para brilhar, de novo, em
Hegel e Schelling.
Realmente. De que prova, rigorosamente
científica, parte o materialismo para negar a Deus e ao Espírito? Se esse
materialismo procede mais remotamente de Kant, e se este demonstra que a
essência das cousas nos será sempre inatingível, então, como podem Fuerbach e
Marx afirmar a inexistência desse inatingível?
Se a prova da afirmação é tão impossível como a negação, segundo os processos
experimentais, nesse caso a negação tem um valor
ideal, esse valor repudiado pelos nominalistas e aceito pelos finalistas.
Considerado o conceito do Universo e do
Homem, como uma concepção ideal; apreciada a ideia negativa segundo o seu valor
essencial; considerada a filosofia marxista como “filosofia de ação”, como ela
própria se denomina, porque dá um sentido social à filosofia de Fuerbach:
examinando o caráter finalista da doutrina de Marx, chegamos à conclusão de que
o marxismo é, apenas, o misticismo às avessas.
É o misticismo da sua própria raça. Para se
compreender a essência recôndita do socialismo de Marx, é preciso conhecer o Talmud e a concepção temporal que se
tinha na Judéia sobre o advento do Messias. Em última análise, essa “ateocracia”,
que domina a Rússia, não passa da velha teocracia hebreia revestida de forma
negativa. O autor de O capital espera
o Messias, que não é um homem, mas uma classe. O seu governo será com a verga
de ferro, como diz o Talmud.
O materialismo histórico, não é, pois, em
última análise, uma negação do “ideal”, nem mesmo do “sobrenatural”: é uma
forma de afirmação, na negação. Pois, negando, confirma, no polo oposto, o
idealismo de Hegel, e repele a crítica de Kant. E vai mais longe: firmando o dogma materialista, demonstra a
viabilidade do dogma teológico...
Eis por que, não tendo o marxismo vencido nos
países materialistas e industriais do ocidente, onde o capital e a máquina
expulsaram, de há muito, a Deus e ao espírito das fábricas e das metrópoles. Pode
vencer na velha Rússia mística, onde as multidões se ajoelhavam chorando diante
do gênio de Dostoievski, que lhes mostrava no céu o objetivo de uma raça
agitada nos seus dramas seculares, e trazendo no fundo da nacionalidade o substractum do sobrenaturalismo
oriental.
SALGADO, Plínio. A Quarta
Humanidade (1934). 5ª edição. São Bento do Sapucaí/São Paulo: Edições
GRD/Espaço Cultural Plínio Salgado, 1995; transcrito das páginas 31, 32, 33, 34
e 35.