sábado, 27 de janeiro de 2024

MARX, HEGEL E KANT (1931)

 

MARX, HEGEL E KANT (1931)

Plínio Salgado

O marxismo é o erro, na verdade, porque nega a finalidade do Espírito e o valor ideal da concepção mística; e faz mais: relega a uma condição secundária as próprias aspirações estéticas, tentando criar o padrão do homem segundo o que podemos denominar a “psicologia da máquina”.

No entanto, há um aspecto que cumpre assinalar no marxismo: é o seu ponto de partida, de desassombrada, corajosa negação.

O marxismo procede diretamente de Kant e de Hegel. Ao passo que Kant considera o mundo como ele é, Hegel trata de explicar o seu desenvolvimento. Nada há imóvel. A ideia absoluta traduz-se no movimento contínuo. Do movimento constante da ideia absoluta, procede o desenvolvimento do Universo. A tese gera a antítese, ambas se fundem na síntese, e esta se divide novamente. Hegel é um idealista, mas, o seu sistema encerra o pensamento revolucionário. É Fuerbach, seu discípulo, que absorve, a um tempo, o processo dialético e o senso evolucionista, materialista, experimental. Ele mostra – resume didaticamente Riazanov (Marx e Engels) – “que todas as nossas ideias sobre Deus, os diferentes sistemas religioso, compreendido o Cristianismo, são o produto do homem mesmo; que não foi Deus quem criou o homem, mas, o homem quem criou Deus à sua imagem”. De sorte que o homem é o princípio fundamental da filosofia de Fuerbach. “A lei suprema para o mundo humano não é a lei de Deus, mas o bem do homem. Por outras palavras, ao antigo pr8incípio teológico, ele opõe o princípio antropológico”(Ob cit.).

Marx completa a evolução do pensamento germânico, criando a sua filosofia de ação. Ele se baseia na dialética de Hegel, no materialismo de Fuerbach, no utopismo de Saint-Simon e seus discípulos, na teoria dos impulsos de Fourier. Baseia-se sobretudo, na precedência da matéria sobre o espírito: houve tempos em que o homem existiu sem consciência; esta veio depois.

Porém Karl Marx procede, como quase todos os valores filosóficos e sociológicos de sua época, do gênio de Emanuel Kant.

Obscuro, complicado, profundo, Kant exprime, na verdade, a caótica nebulosa do espírito do seu tempo, da qual se haviam de destacar as grande ideias nucleares de sistemas geradores de novos rumos científicos, sociológicos, religiosos e políticos. Kant é como essas imensas e transcendentes sinfonias wagnerianas, que parecem usinas animadoras de estranhas harmonias, contendo na sua grande massa como que o limbo de todos os ritmos. Desenvolvem-se em Kant as forças paralelas da moral dogmática e do sistema crítico. Ele vem de Leibnitz e de Wolff, de Rousseau e de Newton; é o grande complexus despertado por Hume do sonho dogmático, de que derivarão constelações de filósofos e pensadores. O século XIX acorda com essa linguagem, que vai traduzir-se na lei dos três estados de Augusto Comte; na sociologia cósmica e mecânica de Dpemcer; no monismo de Haeckel e Lamarck; no cientificismo evolucionista de Darwin, de Buchner, de que Virchow deduz a linha política do socialismo. Desse impulso inicial procede, de certa forma, o i9ndividualismo de Nietzsche, de Carlyle, de Schopenhauer; o socialismo de Blanqui, de Lassale; e toda essa galeria do anarquismo, que vai de Proudhon e Max  Stirner, a Bakounjine, Kropotkine e Tucher

Karl Marx, também, saiu dessa imensa nebulosa. Ele parte de Hegel, guardando sempre a linha do desenvolvimento dialético, no que o seus sistema tem de filosofia; mas, com Fuerbach, ele se transporta para o campo do evolucionismo experimental, caminhando paralelamente com Spencer; e é no utopismo quase místico dos franceses que ele vai buscar sua índole política. Faltava ao socialismo francês, que tão grande influência exercia na Alemanha e na Rússia, o pensamento filosófico, harmonizado com o pensamento científico. O marxismo fundiu todos os elementos e traçou suas grandes conclusões.

A NEGAÇÃO COMO IDEIA

O senso científico, porém, era um desdobramento do nominalismo; e Marx, entrando nesse campo, desvia-se do idealismo de Hegel. Nesse desvio, como que traça um círculo e torna a Hegel, ao velho idealismo, que já tinha vindo remotamente de Platão e entrava no século XIX, tendo passado pelo cerrado nevoeiro de Kant, para brilhar, de novo, em Hegel e Schelling.

Realmente. De que prova, rigorosamente científica, parte o materialismo para negar a Deus e ao Espírito? Se esse materialismo procede mais remotamente de Kant, e se este demonstra que a essência das cousas nos será sempre inatingível, então, como podem Fuerbach e Marx afirmar a inexistência desse inatingível? Se a prova da afirmação é tão impossível como a negação, segundo os processos experimentais, nesse caso a negação tem um valor ideal, esse valor repudiado pelos nominalistas e aceito pelos finalistas.

Considerado o conceito do Universo e do Homem, como uma concepção ideal; apreciada a ideia negativa segundo o seu valor essencial; considerada a filosofia marxista como “filosofia de ação”, como ela própria se denomina, porque dá um sentido social à filosofia de Fuerbach: examinando o caráter finalista da doutrina de Marx, chegamos à conclusão de que o marxismo é, apenas, o misticismo às avessas.

É o misticismo da sua própria raça. Para se compreender a essência recôndita do socialismo de Marx, é preciso conhecer o Talmud e a concepção temporal que se tinha na Judéia sobre o advento do Messias. Em última análise, essa “ateocracia”, que domina a Rússia, não passa da velha teocracia hebreia revestida de forma negativa. O autor de O capital espera o Messias, que não é um homem, mas uma classe. O seu governo será com a verga de ferro, como diz o Talmud.

O materialismo histórico, não é, pois, em última análise, uma negação do “ideal”, nem mesmo do “sobrenatural”: é uma forma de afirmação, na negação. Pois, negando, confirma, no polo oposto, o idealismo de Hegel, e repele a crítica de Kant. E vai mais longe: firmando o dogma materialista, demonstra a viabilidade do dogma teológico...

Eis por que, não tendo o marxismo vencido nos países materialistas e industriais do ocidente, onde o capital e a máquina expulsaram, de há muito, a Deus e ao espírito das fábricas e das metrópoles. Pode vencer na velha Rússia mística, onde as multidões se ajoelhavam chorando diante do gênio de Dostoievski, que lhes mostrava no céu o objetivo de uma raça agitada nos seus dramas seculares, e trazendo no fundo da nacionalidade o substractum do sobrenaturalismo oriental.

 

SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade (1934). 5ª edição. São Bento do Sapucaí/São Paulo: Edições GRD/Espaço Cultural Plínio Salgado, 1995; transcrito das páginas 31, 32, 33, 34 e 35.

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